quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Ah, coragem, essa doce ilusão!

Há alguns anos abandonei um emprego estável que pagava bem pra, de certa forma, "começar de novo". Um amigo disse que admirava minha coragem.

Coragem? Eu não me senti nada corajoso. Na verdade, essa decisão foi muito bem pensada. Apesar da estabilidade e do bom salário, não havia satisfação pessoal naquela ocupação. E teve uma hora que a alternativa passou a ser mais interessante. Vendo sob essa ótica, foi uma decisão até egoísta¹.

Na verdade, acho que a coragem nem sequer existe...

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Suponhamos que tenhamos que tomar uma decisão e tenhamos duas escolhas, A e B (ainda que a decisão B seja não-fazer-A), cujos resultados são ResA e ResB, respectivamente. Nessas horas, nós sempre avaliamos (ainda que de forma inconsciente) quais dos resultados nos parece melhor, qual nos trará maior satisfação.

Se ResA = ResB, tanto faz. Comer macarrão ou lasanha? Tanto faz, gosto de ambos.

Se ResA > ResB, escolhemos A. Vou comer macarrão porque gosto mais de macarrão.

Mas, e se mesmo ResA sendo maior que ResB, ainda assim queiramos escolher B? Aí é que entra a coragem.

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Coragem é uma ilusão que criamos pra nos empurrar pra uma decisão que consideramos, a priori, desagradável. É uma poçãozinha mágica que tomamos pra resolver um dilema em prol de uma decisão desagradável.

Seguindo no exemplo anterior, se ResA > ResB, então nós adicionamos coragem do lado direito da equação na quantidade suficiente para que, voilà! ResA < NewResB (NewResB = ResB + coragem)

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Às vezes, o que nos motiva a avaliar uma opção como pior que outra é algum tipo de inquietação interna, que pode ter uma motivação realista ou fantasiosa.

Por exemplo, pular (A) ou não (B) de paraquedas?

ResA = sentir um afluxo enorme de adrenalina que proporcionará prazer momentâneo
ResB = não sentir nada disso

Se a pessoa sente prazer ao ter a sensação de queda livre, então ela vai considerar que ResA > ResB, logo vai pular.

Mas... "e se os equipamentos falharem?" Apesar de ser uma preocupação com fundo realista (existe essa possibilidade), as estatísticas que suportam esse temor são tão desfavoráveis que o risco passa a ser irrisório. Se, ainda assim, a pessoa continuar sentindo essa inquietação (cuja motivação passa a ser então fantasiosa), então ela considera que ResA < NewResB (NewResB = ResB + inquietação). Aí, se mesmo assim ela quiser pular... CORAGEM! ResA > NewNewResB (NewNewResB = ResB + inquietação + coragem)

(Às vezes a motivação fantasiosa é um trauma, cuja origem é desconhecida, e nesses casos a inquietação não consegue ser explicada.)

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Apesar de ser uma ilusão, a coragem é considerada uma virtude. É aí que mora o problema.

No caso do salto de paraquedas, considere que, por exemplo, está chovendo. Então, pular não parece uma boa ideia de forma alguma, já que o risco é MUITO alto. Quando usada para negar a realidade, a coragem é pura inconsequência.

Ela também às vezes é usada como justificativa para cometermos um ato imoral, como quando uma criança incita a outra a cometer um pequeno ato de maldade (quebrar uma vidraça, por exemplo) botando em dúvida sua coragem. Em casos mais extremos e complexos, ela é justificativa extremamente conveniente para atos que prejudicam outras pessoas e ainda assim parecer nobreza (já que todo mundo quer, no fundo, parecer nobre), quando, por exemplo, o sargento estimula coragem nos soldados durante uma guerra.

Por fim, ela pode ser usada como justificativa para o narcisismo. No caso que eu citei no começo do texto, por exemplo, eu já havia chegado à conclusão de que sair do meu emprego (A) era melhor do que ficar nele (B), porque havia a insatisfação na conta. Então, "começar de novo" já trazia embutida a ideia de que eu estava apenas fazendo algo que me traria maior satisfação.

NewResA = ResA (sair do emprego) + maior satisfação
NewResB = ResB (ficar no emprego) + salário + estabilidade

E a minha conclusão foi que NewResA > NewResB. Não faz o mínimo sentido botar coragem na fórmula.

Se, nessa situação, eu aceito o adjetivo corajoso, estou apenas mascarando minha real motivação, que era maior satisfação, e chamando isso de virtude, quando não há virtude alguma envolvida. De novo, foi uma decisão com fundo egoísta, e egoísmo não é virtude.

Chamar uma atitude egoísta de coragem só serve para alimentar nosso monstrinho interno insaciável que vai pelo nome de Ego.

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¹ o egoísmo não é necessariamente ruim. mais em breve.

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