quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Eu quero uma pra viver...

Definições: 

Ideologia é um conjunto teórico de ideias expresso por palavras.

Cultura é como expressamos aquilo em que de fato acreditamos (portanto além do véu da retórica) com comportamentos, sobretudo direcionado aos outros.

Quando a ideologia não corresponde à cultura, vemos nascer um pequeno monstrinho chamado hipocrisia.

(Sim, até onde me cabe as definições são minhas, mas são nesse contexto que vou usar.)

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O ambiente familiar é o principal responsável pela formação de nossa personalidade. Muito mais do que a ideologia, adotamos inconscientemente a cultura desse ambiente, adaptando nossas respostas aos (e depois copiando os) comportamentos dos pais/cuidadores. Não, não adianta nada o pai dizer uma coisa e fazer outra; a criança tende a adotar comportamentos compatíveis com o que sente do ambiente ao seu redor. São as atitudes que serão levadas em conta pela criança, não o discurso. Isso acontece porque, inconscientemente, a criança usa como referência na formação de seu caráter aquele que lhe provém segurança e que lhe faz se sentir bem consigo mesma (que lhe ama, enfim). Nesse contexto, a hipocrisia é uma péssima ferramenta educacional, porque a criança vai achar que a base do amor é a mentira, e isso vai ensiná-la a mascarar e justificar comportamentos errados. (E bem por isso o amor verdadeiro é a melhor, mas esse é um assunto muito maior.)

Mais tarde na vida, eventualmente, vamos chegar à conclusão de que aquela ideologia inicial não é mais coerente com a pessoa em que nos transformamos. E então, vamos procurar outra ideologia, que seja compatível com nosso modo de ser.

Aí mora o perigo. O ser humano, quando munido de vícios derivados do egocentrismo, vai procurar uma ideologia que justifique e, mais do que isso, enobreça seus defeitos. Daí saem abominações como chamar corrupção de esperteza, chamar possessividade de amor, chamar falta de respeito para com as mulheres de masculinidade, chamar a luta por direitos LGBT de defesa da família... Isso acontece porque, lá no fundo, o ser humano tem a necessidade de ser nobre, independente dos vícios e virtudes que carregue. Mesmo que esteja errado, mesmo que seja hipócrita ("a base do amor é a mentira", lembra?) e antiético, mesmo que esteja propagando agressões físicas e psicológicas, direta ou indiretamente, a outras pessoas, ele vai adotar uma ideologia que transforme isso tudo em nobreza, porque todo mundo quer parecer nobre. Ninguém é o vilão em sua própria história.

Por isso, às vezes, penso que é um risco enorme à própria existência humana permitir que algumas ideologias trafeguem livremente. Se ela é segregadora, discriminatória, fomentadora de preconceito e de violência e ainda recebe um selo que a transforma em nobreza, as pessoas que de fato acreditam nela e a colocam em prática às vezes nem se dão conta de que estão erradas, de que é esse sistema de ideias que está alimentando conflitos e dificultando as relações humanas, de que o problema é com elas e não com os outros, e de que, ainda por cima, podem estar prejudicando a si próprias - se eu passo a chamar meus defeitos de virtudes, essa não é uma realidade difícil de antever.

As ideologias mais nocivas são aquelas que buscam transformar condições humanas específicas em pré-requisitos para uma suposta superioridade que não existe. São elas as responsáveis por todo tipo de preconceito e quase todo conflito social, desde que o mundo é mundo, pois legitimam essa concepção deturpada da existência humana (que eu chamo de "eu sou melhor do que você, porque sim"). Essa história se repete há milênios, mudando apenas os atores e os cenários (as pessoas se escravizam desde as comunidades tribais, não é mesmo?), porque independentemente do momento histórico, o ser humano segue uma programação básica ditada pelos mecanismos inconscientes que governam sua personalidade e, por conseguinte, suas ações, que não mudaram muito desde nossa última grande evolução mensurável, portanto muito antes da primeira vez em que as pessoas resolveram se organizar em comunidades coletivas.

Isso tudo se torna muito mais grave quando uma ideologia assim recebe o nome de religião. Basta usar o nome de Deus, qualquer que ele seja, para que esses sistemas de ideias sejam intocáveis, inatacáveis, indiscutíveis, inarguíveis, e para que todo tipo de ideologia da superioridade possa transitar sob a proteção da liberdade religiosa, da liberdade de crença. Como se acreditar que se é superior por condições que lhe foram concedidas pela natureza por um mero acaso, e, assim, exercer e pregar preconceito, estivesse incluso no conceito de liberdade...

Em nome de uma pretensa liberdade que extrapola sua jurisdição, que passa a englobar o direito de julgar condições humanas diferentes das nossas como inferiores e de, pior, interferir na vida particular alheia, estamos criando conflitos que não existem de forma natural. O ser humano, nessa insana tentativa de se provar superior aos seus semelhantes, vai aniquilar a si próprio.

O mundo deveria ser o mais inclusivo possível, e só nesse cenário eu consigo ver alguma esperança de paz natural, de respeito mútuo. Só nesse cenário consigo imaginar uma sociedade colaborativa e verdadeiramente progressista, que deixe suas diferenças de lado e que caminhe na mesma direção. Mas isso nunca vai acontecer enquanto as pessoas continuarem a chamarem de nobreza as piores características de sua personalidade.