sábado, 14 de setembro de 2013

There and back again

Ainda é comum eu ouvir das outras pessoas algumas informações incorretas e preconceituosas sobre homossexualidade. Que é uma escolha. Que é um comportamento. Que é um trauma. Que é uma perversão. Que é só sobre sexo. Que é uma condição inferior. Que é possível, se não desejável, mudar. Em alguns casos eu sei que as pessoas falam isso por pura maldade, pra tentarem se sentir bem consigo mesmas denegrindo outras pessoas. Mas em outros, sei que elas só estão repetindo as informações que receberam do mundo. Lembro que eu mesmo já acreditei nelas, mas só pude desfazê-las porque minha experiência de vida as provou erradas, e que essas pessoas não passaram, nem nunca passarão, por o que eu passei. E eu também sei que, sem passar por uma experiência, é difícil entendê-la em sua totalidade; para isso, temos que nos esforçar de verdade, num exercício extremo de empatia, para ouvir e de fato processar os sentimentos dos outros, como se fossem nossos próprios. Foi então que surgiu a ideia de compartilhar a história da minha vida.

***

Eu tinha 12 anos, ainda era uma criança, quando aconteceu pela primeira vez. Nunca antes eu havia sentido qualquer coisa por outra pessoa. Mas naquele dia aconteceu. Lembro claramente da sensação: achei aquela outra criança bonita e tive vontade de estar junto dela. Foi só isso, mas pelos vários relatos que já li por aí, acho que é a descrição da primeira paixão. E eu senti isso por outro menino.

Na época eu não sabia interpretar o que estava sentindo. Além de ser a primeira vez, eu nunca havia ouvido falar de um menino se apaixonar por outro; era a década de 90 e eu morava no interior. Sim, eu já tinha ouvido falar de gay, mas a informação que eu tinha era que "gays eram homens afeminados que faziam sexo com outros homens, assumindo o papel da mulher". Ora, não tinha nada a ver comigo, muito menos com o que eu havia sentido. Então eu entendi que apenas tinha gostado dele como um potencial amigo. Também não fez muita diferença, porque só o vi naquele dia, e depois a sensação passou, e não pensei mais naquilo por um tempo.

Mas aconteceu de novo. E de novo. E de novo. E o sentimento era sempre o mesmo, eu achava os meninos bonitos e queria estar perto deles. Mas eu continuava interpretando como desejo de amizade.

Acho que foi por volta dos 15 anos, no auge da puberdade, que começou a aparecer a atração física. Então eu tive outro dilema pra resolver: ser gay continuava sendo só sobre sexo, mas não era aquilo que eu queria pra mim. Sempre quis chegar ao sexo (e até ao beijo) de forma natural, através do afeto, através da intimidade crescente; nem passava pela minha cabeça fazê-lo por pressão social ou só pela experiência. Eu estava interessado no amor. Mas como amor homossexual "não existia", eu inventei outra desculpa pra mim mesmo: o que eu sentia não era desejo, mas vontade de ser como eles, de ter um corpo bonito, "que cara não gostaria de ser assim?"

Eu também tinha outra justificativa interna pra manter minha ilusão: também achava meninas bonitas. (Mas, como eu disse uma vez pra terapeuta, com os meninos era diferente, "alterava a respiração". Acho que todo mundo conhece essa sensação e sabe como ela se chama.) Ainda assim, eu olhava pras meninas sem o menor interesse sexual, a beleza que eu reconhecia era meramente estética. Até tive uma fase de emprestar edições de Playboy dos amigos, mas meu interesse erótico nas fotos era nulo. Só que eu imaginava que o desejo ia aparecer a partir do momento em que eu achasse a "menina certa", e quem sabe era eu que era exigente demais... Além do mais, como eu ia saber que os outros meninos, meus amigos inclusive, não sentiam exatamente a mesma coisa que eu?

Entre os 13 e os 15 eu tive uma fase de sucesso entre as meninas. Várias se declaravam apaixonadas por mim, mas eu fugia de toda e qualquer situação que pudesse parecer mais íntima ou promover um beijo, porque eu não me sentia nada confortável naquela situação; no fundo, aquilo não era nada natural pra mim, era como se eu estivesse me forçando a fazer algo que meu coração não queria. E eu continuava acreditando que a razão era que a menina certa ainda não era nenhuma delas...

No final do segundo grau, quando eu tinha 17, conheci uma menina com quem simpatizei, ela era bonita e amigável, e resolvi romper minhas resistências e tentar avançar um pouco. Mas, de novo, no momento crucial, aquilo tudo era tão desconfortável que eu inventava qualquer desculpa pra não estar mais lá. Quando entrei na faculdade e fui morar em outra cidade, ainda não tinha acontecido nada entre a gente, e continuamos conversando por cartas, mas em pouco tempo ela começou a namorar outro cara.

A faculdade foi um período meio difícil por outras razões, eu tinha pouco dinheiro e poucas oportunidades de sair. Mas isso acabou sendo mais uma desculpa conveniente pra eu permanecer mantendo minha auto-ilusão. Nessa altura, minhas justificativas já estavam tão interiorizadas que eu poderia passar num teste de mentira se alguém perguntasse se eu era gay. Além disso, inventei pra mim mesmo que eu estava apaixonado por aquela última menina e costumava até dizer aos meus amigos que eu gostava tanto dela que era fiel mesmo a gente não estando junto, o que era conveniente pra fugir de qualquer interação social com outra menina qualquer. A falta de dinheiro, essa "paixão eterna" que inventei e minha dedicação aos estudos acabaram por se somar de forma que, no final da faculdade, já com 21, eu continuava interpretando meus sentimentos de maneira errada e esperando a "menina certa" aparecer. Acabei me tornando uma pessoa solitária e até meio amarga, cada vez eu me isolava mais, e chegou uma época que eu comecei a gostar de ser assim, por puro comodismo...

Foi então que decidi que estava na hora de fazer alguma coisa. Por mais que eu nunca tivesse me interessado por uma menina nesse período todo (apesar de estar sempre negando esses mesmos sentimentos quando eram por meninos) de forma que as coisas pudessem acontecer do jeito que eu sempre quis, comecei a pensar se isso tudo não se devia ao fato de eu ser muito tímido, e eu tinha que mudar isso nem que fosse à força. Então comecei a conversar com uma menina que conheci na internet e, um dia, numa balada, meio bêbado, a gente ficou. Dei meu primeiro beijo. Aos 21 anos. Foi a coisa mais ridícula do mundo, como todo primeiro beijo. Ela deve ter me achado bizarro. Acabamos não nos falando mais, tudo que eu queria dela era o beijo mesmo, porque, além de "romper com minha timidez" que eu achava que era o que estava me impedindo de se relacionar com meninas, aquela também era a "prova" de que eu não era gay. (Aliás, a partir dessa época, eu comecei a colecionar essas "provas"; eu me iludia de que o simples fato de estar beijando meninas provava alguma coisa.)

Quis o acaso que, pouco tempo depois, a menina do final do segundo grau voltasse a fazer parte da minha vida. Agora chegar no beijo já não era mais tão difícil. Ficamos e, depois de ela ter me intimado levemente, começamos a namorar.

Acabou sendo um namoro bem cômodo pra mim, porque morávamos em cidades diferentes, e nosso contato era pouco. Mas lembro que as poucas vezes que fui visitá-la e fiquei em sua casa, eu não me sentia nada à vontade. Eu estava tentando inventar um sentimento que nunca existiu. Uma vez ela tentou uma conversa sobre sexo, mas eu fugi do assunto e, obviamente, do ato. Era tudo muito esquisito, eu queria querer estar lá, mas meu coração me impelia no sentido contrário, e quanto mais íntimos a gente ficava, maior era minha rejeição involuntária àquela situação toda. Eu não conseguia agir naturalmente, porque nada daquilo era natural pra mim. Tudo ficou ainda mais sufocante quando ela disse que me amava. Pedi pra acabar mais ou menos quando fizemos 6 meses.

Nessa época eu estava fazendo estágio obrigatório remunerado numa cidade universitária, e foi a primeira vez na vida que eu tive acesso a uma rotina de sair, dinheiro pra fazê-lo e amigos com quem ir. Eu tinha 22 quando adotei o disfarce de hetero pegador; a rotina era encher a cara todo final de semana e agarrar geral. Só bebendo eu conseguia romper todo meu desconforto interno que me impedia até de conversar com meninas e criar as condições para um eventual beijo. Foi durante essa época que um amigo me disse que não conseguia não se apaixonar quando ficava com alguma menina legal; isso me deixou meio reflexivo, comecei a pensar que tinha alguma coisa errada comigo, porque eu não sentia nada por nenhuma delas. Nunca.

Lá conheci uma menina muito bacana com quem fiquei mais de uma vez. Sua companhia era agradável, gostávamos de sair e conversar, e acabávamos ficando quando estávamos bêbados nas festas. Mas ainda assim, ela nunca passou de uma amiga que eu beijava de vez em quando. Foi com ela, uma vez, que eu tentei ter uma relação sexual, mas nunca houve desejo algum. Não consegui.

Essa época do estágio foi de apenas 6 meses, e no final do período acabei voltando pra cidade onde fiz faculdade, e consegui um emprego. Acabei ficando com mais algumas meninas, mas sempre bêbado, e sempre fugindo da intimidade e do contato sexual. Nem sei o que passava pela minha cabeça na época, acho que eu não pensava no assunto, mas também acho que lá no fundo eu estava quebrando algumas resistências muito maiores.

Foi na formatura de uma amiga, em 2006, que tudo mudou. Eu tinha 23 quando olhei pra um cara e, de repente, senti uma vez mais tudo aquilo que eu continuava sentindo por outros caras ao longo dos anos: achei-o bonito, e queria conhecê-lo, estar junto, olhar pra ele, ouvir sua voz... mas pela primeira vez isso tudo foi tão forte que eu não pude mais negar. Eu queria fazer carinho, eu queria pegar na sua mão, eu queria abraçá-lo... e eventualmente beijá-lo. Era paixão à primeira vista, e dessa vez eu não tinha mais como disfarçar pra mim mesmo.

Não aconteceu nada naquela noite, mas ainda assim, lembro de todas as sensações que vieram junto.  "Ah, eu desisto" foi o pensamento que me ocorreu me imediato. Nunca me senti tão completo, tão feliz comigo mesmo, em toda a minha vida. Foi como tirar um grilhão que me mantinha preso, sendo que a chave estava perdida no meu bolso esse tempo todo. De repente todo o meu passado fez sentido. Finalmente aceitei meus sentimentos como eles eram, parei de inventar outros nomes pra eles, enquanto ao mesmo tempo tentava sentir coisas que eu era incapaz.

Minhas expectativas sobre um envolvimento afetivo-sexual nunca mudaram, mas foi nesse momento que eu finalmente me convenci de que estava as direcionando para o gênero errado e que eu nunca poderia viver nada disso insistindo num comportamento que não me era natural. A única coisa que mudou, nessa hora, foi que eu aceitei que minhas expectativas só seriam atendidas se vividas com alguém do gênero masculino. Foi a única adaptação que eu fiz.

Ainda demorou um ano até eu conhecer um cara. Eu não tinha pressa, e meu interesse primeiro não era sexo, eu queria alguém que entendesse o que eu sentia e quisesse compartilhar aquilo. Foi em 2007, aos 24 anos, que saí com ele. Dei o primeiro beijo que eu queria de fato dar. Ele acabou se tornando meu primeiro namorado, e foi com ele que eu tive minha primeira experiência sexual. Do jeito que eu queria. Do jeito que tinha que ser. E foi tudo incrível. Ficamos juntos durante 4 anos. Pela primeira vez eu me senti plenamente feliz, não tinha nada faltando, tudo estava no lugar certo.

Durante todo aquele tempo anterior eu fiquei com várias meninas tentando sentir alguma coisa por elas. Amor, desejo, qualquer coisa além da amizade, mas nunca aconteceu. Mas o primeiro cara que eu beijei, amei com todo meu coração. Cada pequena experiência ao lado dele foi uma nova descoberta, sobre mim mesmo, sobre a vida. Finalmente eu me sentia confortável interagindo intimamente com outra pessoa, não havia qualquer resistência interna, mas muito além disso, era BOM. Eu me sentia bem, me sentia realizado, porque não precisava inventar sentimentos ou forçar situações, foi só deixar as coisas correrem naturalmente. A felicidade surgiu espontaneamente quando todas as outras peças estavam bem encaixadas.

Eu queria viver essas experiências desde o começo da adolescência. Eu queria amar, eu queria compartilhar sentimentos, eu queria descobrir minha sexualidade desse jeito, eu sentia que já estava pronto, mas porque o mundo mentiu pra mim, passei 12 anos trilhando caminhos errados. 12 anos de uma vida finita e curta, que nunca vão voltar. Muito mais do que as experiências, nesse período eu perdi a auto-estima, o amor próprio, a espontaneidade, a sociabilidade. E esse quase foi um caminho sem volta, do qual saí porque o simples acaso (e a sorte) me trouxeram de presente as circunstâncias que me fizeram despertar.

Se eu pudesse mudar alguma coisa na minha história, gostaria que eu nunca tivesse que ter fingido ser quem eu não era. Que eu nunca tivesse sido forçado a mentir pra mim mesmo, a forma mais cruel de traição. Que eu tivesse tipo a oportunidade de ouvir meu coração e fazer as coisas do seu jeito desde o começo. Que, assim como é direito de todas as pessoas, eu tivesse podido viver minha sexualidade do jeito que eu queria e que me satisfaria, através do amor compartilhado na forma que me era natural, desde o primeiro dia.

Tenho lido muito sobre a natureza humana e descobri que só a pessoa plenamente realizada, em paz consigo mesma, tem condições de somar ao grupo de que faz parte. É, portanto, do interesse coletivo que os bons sentimentos individuais sejam respeitados, preservados e praticados. Deixem o amor estar. Em todas as suas formas. Pois ele é o sentimento que mais nos satisfaz. Nosso próprio futuro agradece.